As noções sobre democracia surgiram na Grécia Antiga dentro de um contexto em que a sociedade daquela época era dividida em classes. Assim, apenas exercia o poder político e a capacidade de se manifestar publicamente aquele que era considerado cidadão. Em contrapartida, as mulheres, estrangeiros, presos e escravos eram excluídos da participação na vida política das cidades-estados por não preencherem o requisito “homem livre”.

Já a aceitação atual de representatividade participativa, aquela em que as figuras políticas são votadas e eleitas – segundo a Teoria Política – possui raiz liberal, originada nas correntes de pensamento pós Revoluções Burguesas dos séculos XVII e XVIII. Para o Liberalismo, o status social era considerado um fator de organização das relações entre os indivíduos. Com o fim da Idade Média e o surgimento do sistema capitalista os indivíduos precisariam ser livres, não de forma plena, mas para que pudessem operar dentro do novo modo de produção econômica.

Nesse sentido, uma das preocupações atuais da teoria política é identificar qual é o melhor regime político a ser aplicado na esfera pública. Nas últimas décadas é a Teoria Política Feminista a responsável por analisar os fenômenos políticos utilizando o gênero como critério de interpretação. Para as teóricas feministas o espaço público compreende um dos principais instrumentos de manifestação do poder patriarcal. Assim, são os homens responsáveis por definir o que é política e qual modelo de cidadania devem ser adotados.

A falsa noção que o Liberalismo atribuiu ao instituir as pessoas como seres livres, renegando as diferenças subjetivas entre elas, permitiu que abismos entre estas existissem, distanciando-as. Foi dessa forma que as estruturas hierárquicas sobreviveram e se perpetuaram nas esferas pública e privada. Para a doutrina feminista, o triunfo dos ideais liberais e iluministas de abstração do indivíduo, de liberdade e igualdade universais representou para as mulheres, em vez de empoderamento, nova forma institucionalizada de subordinação.

No Brasil, as mulheres só tiveram direito ao voto no ano de 1932. Entretanto, era obrigatório somente aos homens e só exercia o sufrágio – capacidade de votar – as eleitoras casadas, desde com autorização de seus maridos, e as que fossem viúvas ou solteiras que comprovassem independência financeira. Tais restrições condicionadas deixaram de existir dois anos depois, mas a obrigatoriedade do voto feminino só veio no ano de 1946. Apesar do lapso temporal, infelizmente, é comum – com auxílio de discursos inferiorizantes – vê-las afastadas do gozo dos seus direitos políticos e dos espaços públicos de tomada de decisão, resultando na sua sub-representatividade.

Fomentada por políticas internacionais de discurso igualitário entre os gêneros, desde 1997 as cotas eleitorais priorizam o percentual de trinta por cento do preenchimento para candidaturas femininas no sistema proporcional – cargos de vereadoras e deputadas – contudo, o Brasil continua sendo um dos piores em representação parlamentar feminina na América Latina, permanecendo no mesmo índice desde 1940.

Apesar do avanço provocado pela ação afirmativa, as cotas eleitorais enfrentam o problema da “industrialização das candidaturas-laranja”, fenômeno conhecido quando as interessadas registram suas candidaturas apenas formalmente para que o partido atinja o percentual estabelecido pela política pública mencionada e receba as verbas oriundas do Fundo Partidário. Tal ato configura crime eleitoral e pode levar a cassação de todos os mandatos eletivos, se a aferição de fraude ocorrer após realização do pleito.

A sub-representatividade feminina ocasiona uma série de consequências referente aos benefícios à classe, principalmente, a construção e implementação de macro políticas públicas que abordem a temática “ser mulher”, seja no campo da saúde, segurança, direitos trabalhistas como isonomia salarial, mobilidade urbana, dentro tantos outros. A votação de leis que as beneficiem pode ficar comprometida sem a participação efetiva das mulheres no Poder Legislativo, por exemplo. Além disso, a inclusão das mulheres na vida pública, bem como, sua interação com os demais setores político-sociais, fortalece a democracia.

Legitimar apenas um segmento social é desprezar a ordem plural. As eleições municipais de 2020 apresentaram número recorde de participação feminina. Contudo, estas ainda enfrentam uma série de dificuldades que estrangulam a ambição política de muitas candidatas e lhes garantam êxito eleitoral. Assim, estimular e permitir que as mulheres ingressem nos espaços públicos de poder é ampliar os preceitos de cidadania.

O ineficiente discurso liberal produzido no sentido de que todos estamos imersos sob o manto da liberdade, igualdade e fraternidade não foi capaz de sobreviver nutrindo as disparidades sociais que dele se originava. A mulher deixou de ser vista como o sinônimo das fragilidades inerentes à esfera privada, não ocupante de cargos públicos e condutora da própria vida por suscetibilidades e devaneios emocionais.

Essa migração à esfera pública ainda é marcada por normatização, controle dos corpos, políticas de disciplina e discursos religiosos e científicos inferiorizantes. As dificuldades criadas pelas próprias associações partidárias, na grande maioria, lideradas por homens não abertos à discussão das conquistas femininas, solidificam, não apenas esta, mas tantas outras desigualdades historicamente construídas. Muitas vezes o recrutamento eleitoral do campo político se dá pouco receptivo à uma candidatura feminina no comando de uma chapa, o que faz com que grande parte da pretensão dos votos seja tolhido por candidatos masculinos.

Mesmo que a cidadania e a representatividade tenham retirado das mulheres a capacidade de atuação plena na máquina pública, produzindo um discurso hierárquico que disseminou a diferença baseada no gênero, grandes potências econômicas contemporâneas surgem como destaque de gestão pública tendo mulheres na condução de suas lideranças. São tantos os entraves, que a neutralização e aniquilamento da representatividade política das identidades femininas distanciam a atuação direta desse segmento na esfera pública.

Ironicamente, ainda não é difícil encontrar aqueles que defendam que as mulheres não são capazes de promover grandes contribuições para a vida política de um país, e consequentemente, de participar ativamente da direção da máquina pública. Desse modo, a democracia no mundo contemporâneo não apenas produziu um discurso teórico, na vida prática é fácil compreender que esta também contribuiu, à medida que se difundia, a diferença baseada no gênero.

 

 

Por Douglas Vinícius.