Embora se trate de um substantivo em inglês, aqui no Brasil a palavra “cringe” ganhou uma função de adjetivo parecida com “brega” ou “cafona” nas últimas semanas. Uma notoriedade enorme acerca dela foi estabelecida nas redes sociais após a produtora de conteúdo Carol Rocha, do podcast “Imagina Juntas”, perguntar quais costumes dos millenials a geração Z considera cringe. Depois disso a jiripoca piou de vez, pode acreditar.
Um conflito praticamente inofensivo entre gerações foi estabelecido. Em uma atualidade com “Trono de Vidro”, “Modern Family” e figurinhas da Jinmiran (a bebê coreana fofinha), a geração Z, os nascidos entre o final dos anos 90 e começo dos anos 2000, não parecem mais ter tanto hype para “Harry Potter”, “Friends” e emoji chorando de rir. Os millennials perceberam que envelhecer fez com que eles perdessem grande parte da moral que tinham na internet.
Enquanto isso, os boomers e a geração X estão apenas rindo de toda essa história (e deveriam mesmo, nesse caso é uma discussão bastante inocente e que no máximo vai gerar uma crise existencial em algumas pessoas que estão perto da casa dos 30 anos e que, no fundo, não deveriam ficar tão ansiosos assim quanto a própria idade).
Acontece que a palavra cringe não surgiu para tirar sarro dos millennials.
(Alerta de gatilho: os próximos parágrafos deste artigo irão tratar sobre capacitismo e gordofobia)
Num sentido mais geral, sem considerar somente as últimas semanas, a palavra cringe possui um significado referente a uma situação que causa “vergonha alheia” em alguém. É um termo que já era bastante popular na internet, principalmente para se referir a usuários do Tik Tok. Obviamente não qualquer usuário é claro: especificamente usuários que pertencem a grupos minoritários.
É o caso da @raincloud.heart, uma produtora de conteúdo dentro do espectro do autismo que teve um vídeo seu viralizado e compartilhado com a legenda de ser “cringe” e de que a “internet foi um erro”. O conteúdo do vídeo? A mulher simplesmente expressa a alegria dela pulando e rindo por aproximadamente 20 segundos.. Para alguns usuários, aquilo era inapropriado e infantil. Desse modo, o que é uma situação inofensiva e completamente comum para alguém com autismo se torna motivo de vergonha. Esse era o uso do cringe há alguns meses: repudiar identidades que são diferentes e fora do padrão. Pode até ser que hoje esse conflito entre gerações seja algo descontraído e a palavra tenha sido ressignificada, mas é importante lembrar que essa não era a realidade há pouco tempo (ou pelo menos não o único contexto possível em que a palavra era utilizada).
Outro exemplo é o caso do #finddancingman que ganhou uma repercussão muito grande há alguns anos. Basicamente um homem chamado Sean O’Brian estava dançando em uma festa e algumas pessoas tiraram fotos dele nesse momento (sem autorização) e postaram na internet junto a legenda “vi esse espécime tentando dançar há umas semanas. Ele parou quando viu a gente rindo”. Por mais que o uso da palavra cringe não tenha sido utilizado diretamente aqui, é uma situação semelhante a de diversos usuários com corpos fora do padrão que postam vídeos dançando músicas da moda no TikTok (como qualquer outro usuário), só que, no caso deles, o conteúdo é chamado de “cringe”.
No vídeo “TikTok: Vergonha Alheia e Constrangimento”, Júlio Victor comenta sobre como é importante garantir um ambiente seguro em redes sociais como o TikTok, justamente por ser uma plataforma que tem como público alvo jovens que ainda estão aprendendo a lidar com o próprio corpo e identidade. A youtuber não-binárie ainda ressalta a importância que essa troca de experiências entre os usuários possui para que eles possam entender que está tudo bem ser quem eles são e dar apoio uns aos outros.
Felizmente, é justamente isso que aconteceu com a @raincloud.heart e com o Sean O’Brian. A maioria das respostas do tweet caçoando do vídeo da mulher eram de pessoas defendendo ela e ressaltando que não havia absolutamente nada de errado com aquele vídeo. A Rain ainda respondeu agradecendo pelo apoio que as pessoas deram e disse que não tinha vergonha alguma da felicidade que ela expressou no vídeo.
E a história do Sean terminou de uma forma melhor ainda: um grupo de mulheres lideradas pela ativista Cassandra Fairbanks decidiram organizar uma festa que fosse um ambiente seguro para que o homem pudesse dançar em paz e se divertir. Fairbanks lançou a hashtag “finddancingman” que viralizou e até mesmo o Pharrell Williams se ofereceu para tocar no evento de graça. De fato as mulheres conseguiram encontrar o homem e o evento aconteceu (*existe até um documentário disponível gratuitamente no Youtube sobre essa festa que você pode acessar no final deste texto).
Portanto, o que podemos concluir diante de toda essa discussão é que “cringe” é uma palavra que foi ressignificada nas últimas semanas para evidenciar as maiores diferenças entre a geração atual e os chamados millennials. Desse modo, por mais que tenha sido bastante saturada pela mídia, não é lá um grande problema utilizá-la, já que agora no senso comum ela não representa mais tanto o contexto tóxico abordado neste texto.
Assim, é importante relembrar as diversas utilizações dessa palavra. Não para que “as pessoas simplesmente parem de utilizar o termo cringe ‘porque é errado’”, mas para entender que ela já fez parte de uma situação maior que envolvia sim o intuito de causar repulsa acerca de pessoas pertencentes a grupos minoritários que só queriam se divertir e existir sem serem desrespeitadas nas redes.
Além disso tudo, é válido ressaltar também neste final que existem uma série de montagens engraçadas na internet com a legenda “eu sou cringe…mas eu sou livre”, que representa um pensamento ótimo sobre como às vezes é preciso de fato não ligar para o fato de que, cedo ou tarde, felizmente ou infelizmente, seremos chamados de “cringe”, “brega” ou “cafona” por alguém no futuro e isso definitivamente não precisa abalar nosso senso de identidade.
(descrição da imagem: o meu cachorro, Trovão, um Husky de cor café com leite com a legenda em letras coloridas cafonas “eu sou cringe, mas eu sou livre”)
-Italo Marquezini
*link para o documentário “The Dancing Man” sobre a festa organizada para Sean O’brian: DANCING MAN THE DOCUMENTARY – YouTube
Referências:
TikTok: vergonha alheia e constrangimento – YouTube
Parabéns pelo texto, explicativo, inteligente e muito interessante.
Orgulho de vc. 😍
Eu sou Cringe…kkkkkk
Ótimo texto Italo, temos certeza que um dia todos nós seremos cringe, cafona, ou sabe qual será a palavra ou o termo no futuro. Mas somos felizes e livres independente de que forma for . Parabéns❤️