“O que importa não é se as pessoas são boas ou más. O que importa é se elas estão tentando ser melhores hoje do que foram ontem. Você me perguntou de onde vem a minha esperança? Essa é minha resposta” – Michael, The Good Place 4×06
No universo do seriado “The Good Place” até a pessoa mais preocupada em ser ética e bondosa pode acabar indo parar no inferno (ou simplesmente no chamado “Lugar Ruim”). Isso acontece em razão de um sistema que avalia as pessoas após a morte em erros e acertos. É o caso do personagem Doug Forcett, que vive constantemente preocupado em cumprir boas ações, mas mesmo assim não consegue sair bem-avaliado pelo sistema para que ele vá para o chamado “Lugar Bom”.
Desse modo, a série introduz Eleanor, uma mulher que nunca tentou ser ética ao longo da vida, que começa a ter aulas de ética com o ansioso professor Chidi para se tornar uma pessoa melhor. Não que as aulas de Chidi fossem perfeitas, mas você já pensou o que aconteceria se Eleanor chamasse as aulas do colega de “cancelamento” e se recusasse a aprender? Ou melhor, e se o Chidi tivesse “cancelado” e isolado a Eleanor pelos erros cometidos por ela em vida sem qualquer tentativa de mudança agora no pós-vida?
Certamente essas duas situações hipotéticas são exemplos do que seria um “cancelamento”, termo bastante utilizado na internet nas últimas semanas. Para entender mais acerca das polêmicas que envolvem o uso desse termo, é preciso entender antes não apenas o modo como utilizamos a internet, mas também nossa própria relação com os movimentos sociais que prezam uma mudança na sociedade e como parte deles se manifesta nas redes sociais hoje.
A internet e o que motiva os cancelamentos
Nas redes sociais de hoje, cada vez mais adaptadas à chegada de novos usuários de diversas idades, é possível construir uma imagem bem maravilhosa de si mesmo. Não necessariamente uma imagem livre de tristezas e inseguranças, mas uma imagem que tente tenta simbolicamente se mostrar como alguém bom e que apoia causas justas. O problema surge quando vende-se a ideia de que “militante” é sinônimo de uma pessoa ativa nas redes sociais focada apenas em debates que, no fundo, procuram apenas destruir e cancelar a imagem simbólica de um usuário por meio de ataques. Ao invés de tentar mudar de fato essa única pessoa ou ainda combater a estrutura vigente que normatiza que ideias cada vez mais problemáticas sejam propagadas.
É óbvio, seria um tanto raso achar que uma única pessoa jovem nas redes sociais seria capaz de mudar toda uma estrutura opressiva vigente, mas é certo que ser conhecido como “cancelador” não é obrigatoriamente sinônimo de ativismo ou referência, na hora de combater uma opressão.
No entanto, também é um tanto presunçoso achar que qualquer ativista que interagir em debates nas redes para promover, por exemplo, um boicote à (ou o cancelamento de) uma marca que tenha acusações de trabalho escravo, não possui boas intenções e busca apenas “cancelar” para ganhar curtidas e engajamento.
Essas duas perspectivas sobre cancelamento não se anulam. Tanto o ato de cancelar para construir o próprio caráter virtualmente e o ato para que haja responsabilização de uma instituição ou ou pessoa. O “Cancelamento” pode cair em diversas definições e é por essa razão que se deve ter cuidado ao se discutir esse assunto.
O cancelamento na prática
Para alguns a “cultura do cancelamento” na prática abrange apenas boicotes e ataques virtuais para marcas ou artistas após cometerem erros graves. É daí que surge a famosa polêmica de que essa cultura teoricamente não permitiria que a pessoa ou empresa se retrate e mude. Entretanto, é possível dizer que o cancelamento pode ser também simplesmente o incômodo causado por precisar ouvir novas perspectivas que não eram notadas até então.
Desse modo, não há razão para “cancelar o cancelamento” se o que é chamado de pensamento crítico e respeitar o lugar de fala do próximo for cancelamento. Ser vulnerável o suficiente para assumir que errou, muitas vezes sim pela negligência ou falta de acesso à conteúdos que abordem o assunto dessas críticas específicas, é um passo muito importante para que o cancelamento não seja considerado “vitalício” pelo público. Uma forma de evitar essa situação é se informar seguindo desde já pessoas dentro desses movimentos que muitas vezes não possuem uma voz. Com o valor que a representatividade possui sendo reconhecido gradualmente hoje, fica cada vez mais fácil buscar referências de lutas do movimento LGBTQIA+, por exemplo. Desse modo, é possível entender que existirá uma pluralidade enorme de opiniões entre participantes de um movimento e que nem sempre eles irão concordar se alguém deve ser cancelado ou não.
No entanto, o que ocorre muitas vezes é chamar de “cancelamento” muitas das críticas vindas diretamente de pessoas ligadas a lutas sociais como anticapacitismo e antirracismo. Muitas das pessoas canceladas sugerem que essas críticas vêm de pessoas “sensíveis demais” e que estão apenas “cancelando para arruinar a vida de pessoas honestas apenas para se autopromover”. Novamente, é preciso reforçar que essa ideia além de ser uma perspectiva bastante rasa do que motiva os movimentos sociais, é também muito cercada de individualismo do próprio usuário em basear uma luta inteira a partir de eventos e figuras específicas que não representam o pensamento de um todo.
Consequentemente, é evidente que algumas críticas virão acompanhadas de um exagero abusivo e até mesmo criminoso, como ameaças de morte. É importante entender que sim seria um exemplo de um cancelamento perigoso e que não é endossado pela maior parte de um movimento social, que na maioria das vezes acredita sim em uma responsabilização e mudança de um indivíduo. É um fato muitas vezes esse tipo de cancelamento carrega problemas maiores do que o próprio erro da pessoa cancelada. Esse cancelamento sim é o que deveria ser cancelado.
E aqui entra o caso mais comentado das últimas semanas: o cancelamento de Lucas Penteado pela maioria dos membros da casa do Big Brother Brasil 21ª edição, que decidiram isolar o garoto após uma série de comentários problemáticos vindos do jovem em uma festa. A pressão psicológica constante feita pelos outros participantes foi tanta que o fez abandonar o programa. Um dos exemplos foi o ato de afastar o jovem até dos almoços em grupo, sugestão da cantora Karol Conka, que por sua vez, também foi cancelada pelo público por considerá-la hipócrita por suas diversas atitudes, xenofóbicas, capacitistas e tóxicas e perdeu por volta de 400 mil seguidores no Instagram.
Essa situação exemplifica um cancelamento que claramente procura mais uma autoconstrução de uma imagem para ganhar o público e não sair do programa do que de genuinamente tentar responsabilizar e ensinar aquele que errou, o que resulta em uma “penalização” desproporcional ao que foi cometido pelo Lucas, nesse caso. Muitas vezes, esses atos de cancelamento são bem mais desproporcionais com pessoas que fazem parte de grupos minoritários, o que de forma alguma diminui um erro ou sugere deixar de cobrar uma responsabilização de quem errou, apenas que as cobranças nessas situações são acompanhadas de expectativas irreais acerca dessas pessoas e que alguns podem utilizar-se dessas situações para tentar desclassificar um movimento inteiro.
Talvez nem todos os leitores aqui do blog acompanhem o programa ou apreciem qualquer conteúdo relacionado ao Big Brother, mas esse foi justamente o programa que evidenciou o assunto de cancelamento nas redes nos últimos tempos. O que inclui essa discussão aqui na Avra também. É um fenômeno recente e bastante complexo nas redes sociais que possui diversas conclusões. Nem eu procurei chegar a uma única resposta enquanto escrevia esse texto, já que não é possível chegar em apenas uma conclusão na hora de comentar como a sociedade de hoje funciona. Ou como um ser humano funciona, em geral. Portanto, eu espero ter bagunçado um pouco a cabeça de vocês, assim como Chidi fez com a Eleanor em “The Good Place”, para que diversas perspectivas sobre “a cultura do cancelamento” percorram a sua cabeça quando esse assunto tão importante e polêmico vier à tona novamente nos próximos tempos.
-Italo Marquezini
Referências:
Chapter 35: Don’t Let The Good Life Pass You By | The Good Place Wiki | Fandom
POLYMATUS – Daniel Brito: O PARADOXO DA TOLERÂNCIA (daniel-brito.blogspot.com)
(420) CULTURA DO CANCELAMENTO: punição ou responsabilidade? – YouTube
(420) How not to take things personally? | Frederik Imbo | TEDxMechelen – YouTube
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