Mesmo após uma mobilização intensa nas redes sociais para adiar o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) devido a segunda onda de contágio do coronavírus no Brasil, a prova de Linguagens e Ciências Humanas aconteceu no último domingo (17) com o tema de redação “O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira”. Os candidatos só souberam o tema ao abrir a prova, assim como nos anos anteriores.
Nos últimos 3 anos, os assuntos propostos para a elaboração do texto se apresentaram como pouco polarizadores ou polêmicos, todavia, não menos desafiadores ou surpreendentes para os alunos com apenas 5h30 para realizar a prova. É certo que o tema do ENEM 2020 (mesmo que aplicado em 2021) faz parte de uma discussão atemporal e cada vez mais presente na consciência de uma juventude com filmes como “Coringa” e o seriado “13 Reasons Why” na ponta da língua.
As cicatrizes da história
Em 1882, um dos maiores nomes da literatura brasileira (se não o maior), Machado de Assis, escritor e jornalista, publicou o conto “O Alienista” no jornal “A Estação”. Com o intuito de desvendar a mente humana, o personagem Dr. Bacamarte abre a Casa Verde, um manicômio destinado a todos os que fossem considerados “loucos” na cidade.
Acontece que ao longo do livro, o médico começa a perceber que ausente de sanidade mental mesmo é quem é completamente íntegro e constante nas próprias atitudes. Tanto que o personagem só chega a essa conclusão após internar “apenas” 75% dos cidadãos de Itaguaí em seu manicômio sob justificativas que simplesmente não faziam sentido. Um dos exemplos é a internação de Costa, um herdeiro bastante rico da cidade e que emprestava dinheiro para as pessoas sem cobrar quaisquer juros. De acordo com o Dr. Bacamarte, isso “claramente o fazia ser um mentecapto” e ele não poderia ficar solto assim na rua.
Ao considerar que a psicanálise começou a ganhar força no final do século XIX, não é de se surpreender que um dos maiores escritores brasileiros buscou ironizar parte desses estudos combinado à uma forte crítica sobre a sociedade burguesa da época tão característica de suas obras. Entretanto, nem sempre esses estudos foram utilizados apenas para um propósito ficcional, cômico e crítico como Machado fez em seu conto.
É o caso do Hospital Colônia de Barbacena.
Inevitavelmente comparado à campos de concentração pelas condições insalubres e pela matança sistemática, a jornalista Daniela Arbex quem nomeou o caso como “Holocausto Brasileiro” no livro dela lançado em 2013.
De uma certa forma, as internações que o personagem de Machado fizera na Casa Verde conseguiam pelo menos chegar no nível de serem cômicas para os leitores. Não é o caso do Hospital Colônia de Barbacena, inaugurado em 1903. Dos internados, 70% não possuíam qualquer registro de doença mental e alguns exemplos de público alvo para internação eram gays, alcoólatras, pobres, desabrigados e militantes políticos. Nos dias atuais, os “tratamentos” utilizados no local seriam facilmente comparados à tortura.
A situação foi um dos casos que motivou os Movimentos Antimanicomiais, que lutam por reformas sanitárias e pelo direito das pessoas com doenças mentais e teve seu começo por volta dos anos 70.
A importância do tema hoje
Nos dias atuais, a depressão é a doença mais incapacitante do mundo. Essa informação foi dada aos alunos pela própria prova nos textos motivadores para realizar a redação. No entanto, não é surpresa que os jovens hoje estejam cada vez mais cientes da importância da saúde mental e que tenham referências próprias para citar na hora da redação e dar autoria para os textos.
Como se pode observar hoje, é bem fácil para os jovens acessarem as mais diversas redes sociais e terem um perfil cercado por uma imagem de vida perfeita e imutável. No entanto, o contrário também ocorre com frequência. No Twitter é bem comum aparecerem desabafos de usuários sobre as próprias inseguranças e, muitas vezes, esses textos recebem uma enorme quantidade de curtidas e compartilhamentos. Em uma linha do tempo cheia de notícias, memes, opiniões e fotos, existem relatos de jovens no meio de crises de ansiedade.
Na mesma proporção, é possível perceber que há uma busca desses mesmos jovens, que usualmente podem não ter acesso à terapia, seja por não terem renda para isso ou pela negligência de seus responsáveis, por um conteúdo mais acolhedor e saudável para si no meio de uma timeline tão caótica.
Assim, não é de se surpreender que os vídeos da jornalista Julia Tolezano (a “Jout Jout”) e da comunicadora e cientista Nátaly Neri, premiada como Referência Digital pela Agência de Cultura, Empreendedorismo e Comunicação em 2020, se popularizaram tanto entre diversos jovens. Evidentemente conteúdos como os delas são um respiro no meio de um sufocamento causado pela sensação coletiva de desamparo que diversos jovens enfrentam.
Portanto, também não é surpresa que muitos estudantes tenham se interessado por obras como “13 Reasons Why” e “Coringa” e puderam citar elas na prova. A sensação de isolamento social, já era um problema a ser enfrentado entre os jovens mesmo antes da pandemia e tanto a série como o filme, em algum nível, abordam essa problemática e procuram debater sobre o estigma associado às doenças mentais que muitas pessoas enfrentam no mundo. Não obstante, citar músicas de bandas como BTS e Twenty One Pilots também foi algo recorrente, já que por meio de músicas como “Blue & Grey” e “Goner”, esses artistas se propuseram a evidenciar discutir o tema.
Em suma, o tema escolhido definitivamente possui uma relevância social e é plausível que muitos jovens que acabaram de sair do Ensino Médio conseguissem escrever sobre. No entanto, se os candidatos conseguiram realizar a redação, isso foi graças aos esforços constantes de professores tanto da rede pública quanto privada que tiveram que se reinventar no meio de um ano de pandemia. É certo que o vestibular também exigiu uma dedicação cruel dos próprios alunos para conseguirem estudar e manter a saúde mental todos os anos. Todavia, quando somado com o contexto da pandemia, parece irônico falar sobre doenças mentais em uma prova que justamente prejudica a saúde mental da maioria dos jovens hoje que pediram o adiamento da prova para a própria segurança, mas não tiveram essa exigência atendida.
– Italo Marquezini
Referências:
O que foi a tragédia do Hospital Colônia de Barbacena? | Super (abril.com.br)
18/5 – Dia Nacional da Luta Antimanicomial (saude.gov.br)
O Alienista – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
O Alienista: resumo e análise do livro (guiaestudo.com.br)
Quais os dilemas na volta às aulas na cidade de São Paulo | Nexo Jornal
Otimo texto Ítalo.
Parabéns!!!