Neil Gaiman, escritor britânico de sucesso e autor de livros premiados como “Coraline”, em seu livro “Deuses Americanos”, apresenta a importância que a ficção possui em nos auxiliar a observar o mundo por outros olhos. Ao pensar que esta mesma obra se compromete a justamente nos mostrar uma série de religiões hoje presentes nos EUA e suas influências nos cidadãos, é visível o papel essencial que a leitura, por exemplo, pode ter em nos auxiliar a desenvolver nosso pensamento crítico e a simples empatia aos que estão ao nosso redor. Acontece que 11,09 milhões de brasileiros acima dos 15 anos são incapazes de ler. Essas pessoas não conseguiriam ler as palavras de Gaiman em seu livro ou talvez nem mesmo chegar a ler essas 138 palavras presentes nesse primeiro parágrafo de introdução. E sim, isso é preocupante.

O tema para a redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em 2019 foi “a democratização do acesso ao cinema no Brasil”. A princípio, o cinema é uma cultura de massa, isto é, mais fácil de ser consumido por uma grande parte da população. Ainda assim, os textos motivadores da prova demonstraram dados que comprovavam a dificuldade de tornar essa arte acessível a todos em regiões como o Norte e Nordeste, em periferias urbanas e em cidades pequenas e médias do interior. Embora sob muita polêmica acerca da escolha do tema, Max Valarezo, jornalista e criador do canal “Entre Planos” defendeu a importância do debate sobre esse assunto, ao citar filmes como “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, ambos brasileiros, ele afirma como o audiovisual, nesse caso, ajuda a compreender, respectivamente, mais sobre o racismo sistêmico e histórico, e sobre a atuação da Polícia Militar nos morros.

Além disso, Valarezo cita o premiado projeto “Cineperiferia” da ONG Movimento Pela Paz na Periferia (MP3) em Teresina. Esse projeto, que consistia basicamente em um “cinema móvel” usando um projetor e uma Kombi, ajudou a direcionar o interesse de vários jovens para longe das drogas e gangues violentas e a preencher vagas em diversos cursos de capacitação na própria ONG. Nesse sentido, o jornalista apresenta a importância não só do cinema, mas do acesso às artes e a cultura como meio para se obter lazer, entender mais sobre o mundo e até mesmo para ganhar maiores oportunidades de estudar e trabalhar.

Ainda sobre cinema, um filme com um papel de destaque quando se trata de celebrar a importância da cultura é o filme da Marvel “Pantera Negra”, dirigido por Ryan Coogler. A obra cria uma identidade própria a partir de referências históricas e culturais de diversas etnias do continente africano e da vivência de diversos afro-americanos nos EUA. Uma das principais representações desse uso é no figurino. Algumas das vestes coloridas utilizadas por T’Challa, o herói do filme, são inspiradas no grupo étnico de Akan que vive na parte da África Oriental, em Gana. Esse cuidado com as particularidades culturais fizeram com que Pantera Negra não apenas ganhasse um Oscar de melhor figurino, como também garantiu um lugar merecido entre os melhores filmes da Marvel. A obra consegue em pouco mais que 2 horas inspirar diversas crianças como um bom filme de herói deve fazer e também efetua uma afirmação da cultura negra, com todo o respeito e empoderamento necessário para gerar uma história da melhor qualidade e no maior nível de excelência imaginável em uma tela.

Na imagem a frase: "É difícil para um bom homem ser rei"

Essa busca pelas próprias raízes em uma cultura pode ter um valor para um autoconhecimento também. O livro “O que o sol faz com as flores”, da escritora indiana e feminista Rupi Kaur, constrói uma narrativa em capítulos por meio de poemas do “murchar” até o “florescer” na vida. É essencial reparar que é partir do capítulo intitulado “enraizar” que o livro começa a dar um caminho mais claro para esse “florescimento”. Nesse, Rupi efetua um relato pessoal que declara seu amor aos seus pais e assume a importância que estes tiveram em sua vida, ao contar da dificuldade que eles, imigrantes, tiveram em criar seus filhos em um país com uma cultura bastante diferente. Com seus poemas, a autora não só aborda temas como corações partidos, abusos, feminilidade e empoderamento, mas também relata algumas de suas experiências e seus pontos de vista sobre o mundo. Uma leitura como esta tem valor justamente por apresentar essas perspectivas sob um olhar de alguém com vivências, muitas vezes, um tanto diferentes das nossas e por meio da poesia, que aqui muitas vezes é escrita com poucas palavras, mas que pesam o quanto precisam pesar.

George R. R. Martin, escritor das “Crônicas de Gelo e Fogo” que inspiraram a premiada série televisiva, Game of Thrones, escreveu “Um leitor vive mil vidas antes de morrer. O homem que nunca lê vive apenas uma”. Nesse caso, podemos citar livros como “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, que nos coloca na pele de diversas crianças pobres que vivem na Bahia e se esforçam para sobreviver. “O Doce Veneno do Escorpião”, de Raquel Pacheco, nos coloca para entender a vida de uma mulher que decidiu virar garota de programa com 17 anos e registrar suas experiências em um blog. “O Diário de Anne Frank” nos coloca da pele de uma vítima real e jovem do holocausto na Alemanha nazista. “A Hora da Estrela”, de Clarice Linspector, relata a breve vida de uma moça ausente de uma série de virtudes que uma protagonista de uma história geralmente teria. “Eu sou Malala” nos coloca para entender a história de uma ativista ganhadora do Nobel da Paz que luta até hoje pelos direitos humanos e a educação para diversas mulheres ao redor do globo. Se você, leitor, possui a liberdade de escolher quais destas obras pretende ler, isso já demonstra seu privilégio de poder “viver” essas outras vidas antes de morrer.

A importância da cultura resulta disso, dessa luta em poder ser capaz registrar e ouvir novos pontos de vista. A literatura é um dos mais antigos meios de ter uma voz. Privar pessoas do ato de ler e escrever talvez seja uma das melhores definições do que é ser desumano, pois lutar pela cultura é lutar pela simples ação de falar, expressar-se e existir com suas próprias tradições e comportamentos. Lutar pela cultura é uma constante busca por adquirir empatia e essa luta, talvez, possa ser então uma das melhores definições do que é ser humano.

 

– Italo Marquezini

 

Bibliografia:

https://infograficos.gazetadopovo.com.br/educacao/taxa-de-analfabetismo-no-brasil/#:~:text=O%20Brasil%20tem%2011%2C3,n%C3%A3o%20sabem%20ler%20ou%20escrever.

https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2018/02/pantera-negra-e-repleto-de-referencias-historicas-e-culturais.html

https://www.hypeness.com.br/2018/02/as-tradicoes-tribais-africanas-que-inspiraram-os-figurinos-de-pantera-negra/

https://www.youtube.com/watch?v=w2w9Ew963Us